NO LINK ABAIXO, VOCÊ ENCONTRA A VERSÃO NO FORMATO E-BOOK DE MEU LIVRO "SILVA, QUADROS E LIVROS - UM ARTISTA CAIPIRA". HÁ TAMBÉM A ÓTIMA TRADUÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA, REALIZADA EM CUBA (O LIVRO RECEBEU O PRÊMIO 'CASA DE LAS AMÉRICAS'). A PRESENTE EDIÇÃO FOI PATROCINADA PELO MINISTÉRIO DA CULTURA.
PARA LER OU BAIXAR.
ÓTIMA LEITURA,
ROMILDO
http://books.google.com.br/books?id=di9wVH_GLToC&pg=PA273&lpg=PA273&dq=Silva%2C+cuadros+y+libros&source=bl&ots=zA43wmHEYN&sig=NYm169Qa98IORKSkD_NgGcp78bE&hl=en&sa=X&ei=l9AvUZHiNYG69QTu4YGYCA#v=onepage&q=Silva%2C%20cuadros%20y%20libros&f=false
É TUDO VERDADE
Crônicas ilustradas / ROMILDO SANT'ANNA
sexta-feira, 1 de março de 2013
domingo, 5 de agosto de 2012
O FOCA
Jânio de Freitas e Paulo Francis
A foca é bicho de águas salgadas, faz festa nos aquários e sessões da tarde. Dizem que é inteligente e faceira, mas nunca entendi o porquê daquela carinha de alegria: tem as barbatanas curtas, achatadas, e se locomove em contorções. Semelha a um desses seres em eterna transição anatômica. Seu nome, usado como substantivo de dois gêneros, designa também o/a jornalista em começo de carreira. Os dois mamíferos não teriam interesse nesta crônica, não fosse “o foca” a redenção viva da imprensa em geral.
Bóris Casoy e Carlos Castelo Branco
Simpatizo-me pelo foca. Sempre se incumbe de reportagens chatas. Eu mesmo fui um foca, nos idos da ditadura. O editor do Diário pautou-me matéria em um cárcere, sobre a vida dos detentos. Lá fui, vestido de coroinha, três sábados seguidos, às 4 da tarde, a ajudar a missa que um padre italiano rezava no presídio. Voltava com um balde de cartas que os presos me confiavam, driblando a censura da chefia. Quando não envelopadas, lia-as por curiosidade mórbida. O foca é um eterno curioso, e essa é uma de suas qualidades mais fecundas.
Élio Gáspari e José Hamilton Ribeiro
Bluff Your Way in Journalism, de Nigel Foster, sobre gritantes equívocos dos jornais, jornalismo e jornalistas (cito o título em inglês pra fingir que li no original; os que já foram foca têm constantes recaídas de foca).
Clovis Rossi e Glória Maria
Como dizia, em tal livro se afirma que o foca-homem sofre de acne terminal, o que parece verdade e suscita anedotas na redação. Mas, por maldade ou machismo, assevera que a foca-mulher está sempre atenta contra o assédio sexual e, em muitos casos, fica frustrada quando isso não lhe acontece.
Millôr Fernandes e Alberto Dines
Um dom agregado à condição de foca é a arrogância e presunção, diz o livro. Seja qual for o assunto, dá sinais de entendido. Diante dos acontecimenos que serão notícias, manifesta longos silêncios, como que a dissecar as segundas intenções dos personagens envolvidos. Nas entrevistas, olha o interlocutor com suspeitas, e, ao redigir o texto, enfatiza entre aspas tropeços do entrevistado. Nesse ponto, há que se lhe acrescentar mais um toque de personalidade: o foca quase sempre é do contra e exerce o autoritarismo dos novatos.
Reale Júnior e Salete Lemos
O foca, foca mesmo, adora jargões em inglês dos cursos de jornalismo. Esnoba “hard news”, “leads”, “on”, “off”, “press release” e “briefing”. Mas, plantado no instinto, com atributos peculiares do foca, é o que vai tornar-se o jornalista que se preza, de honra. Incorpora a ação altruísta que só germina no fulgor da juventude. E se faz locomotiva a noticiar o tempo que transforma, canal de denúncia à torpeza dos rudes, fermento de coragem, idealismo e civilidade.
Tim Lopes e Zuenir Ventura
Wladimir Herzog
domingo, 1 de julho de 2012
O GRILO
Não há bicho mais estranho neste mundo, o grilo. Sempre à espreita, mas secreto e salteante, semelha a um graveto em surto neurótico. Feito de engrenagens sumárias e onipresente no ruído incisivo, o grilo tem por ofício rasgar as cortinas da noite. Dizem que o potente aparelho sonoro localiza-se na nervura das asas anteriores, apenas dos machos. Às grilas, silenciosas e certamente desamadas (por isso nunca dão berço, carinho e tetas aos grilinhos), é dada a prerrogativa de gerar a alta densidade populacional de grilos, no moto-contínuo das estridências da vida.
Não querendo polemizar com o rigor e sacerdócio dos mais obstinados grilólogos, diria que os grilos – inseto ou na versão humana – nasceram para a função patológica da aporrinhação. Claro, sou leigo no assunto, e sobre o tema devem existir teses aprovadas com distinção e louvor, com a chancela de vetustos órgãos nacionais fomento à pesquisa. Isto, nos vários campos da ciência, da zoologia à semiótica (esta, a mais fecunda encarnação intelectual do grilo). Leigo, repito, não tive acesso às certamente perspicazes reflexões semióticas sobre o cricri, onomatopeia eloquente do personagem em questão.
Poucos nomes da fauna derivaram tantas e novas palavras. “Gatuno” é malandro que furta, em paralelismo com o gato; o que faz “cachorrada” aprontou alguma com alguém; “borboleteante” é o sujeito volúvel, que vaga como borboleta. Porém, beirariam o vale dos abusos verbos como “andorinhar”, “besourar”, “onçar” e suas flexões. O grilo, porém, nos deixou uma fortuna léxica. Diz-se que alguém “grilado” padece de desassossego; quando algo possui “grilo”, a situação está ruça; motor “grilando” precisa ir ao mecânico; adolescente “bicho-grilo” é de lascar.
A Bug's Life (Vida de Inseto).
W. Disney Pictures, 1998.
Pelo que segue, o grilo é mais danoso que seus primos, os nefastos gafanhotos. Fez-se comparsa dum dos maiores cancros do Brasil: o grileiro. Grilos, grilagens relacionam-se à apropriação de terras públicas e privadas, por meio de escrituras fraudulentas. Grileiros, inda hoje, mobilizam o Judiciário, Ministérios e CPIs, quase sempre inóquos. A injustiça agrária, a discrepância entre riqueza e miséria, as expropriações legalizadas, o genocídio aos indígenas, o coronelismo feudal e aberrações políticas são, em grande parte, herança cultural da grilagem, grileiros e (por que não dizer?), do pérfido bichinho, o grilo.
Pe. Victor Asselin. Grilagem.
Petrópolis: Vozes, 1982.
Monteiro Lobato, no livro A Onda Verde e o Presidente Negro, revela a receita: primeiro, falsificavam a escritura da terra; depois, para dar ao documento aparência antiga, colocavam-no numa caixa infestada de grilos. Semanas após, corroída e amarelada por substâncias liberadas pelos bichos, a papelada parecia envelhecida, autêntica. Eia, pois, a orquestração monótona do grilo e a alquimia esperta de seu mais próximo transgênico: o grileiro. Galopando por campos e cidades, esse empesteamento patrimonial e vergonhoso nos ata aos modos de antanho que persistem té agora. E emburrecem o país.
foto: Sebastião Salgado
sexta-feira, 1 de junho de 2012
VISTE KOYAANISQATSI?
Jamais saberei se estás em minha idade: um inapelável sessentão. Ai, tantas pedradas, quantas notas em dó, muito vinho avinagrado na garganta! Fumando umas coisas, víamo-nos uns nos outros e nos relacionávamos com a natureza, entre Pink Floyd, Charlie Parker e Joan Baez. Nem posso adivinhar, dileto leitor, em que ocasiões te bate a sensação de tempo perdido. Mas, se nunca o tens, não te felicito. O tempo nos pesa e haverá entre nós o liame irreversível de nos havermos estado no eito da mesma ponte: a loucura dos anos que passaram.
Cena de Koyaanisqatsi (1982), de Godfrey Reggio
Apresento-me. Sou da geração dos filmes de Godard. E os tínhamos sem renitência, pois não era de bom tom (e nem o queríamos) abandonar as sessões de cinema pela metade. Nem namorávamos a contento, alucinados pelos intermináveis planos-sequências, montagens descontínuas, gestos improvisos e diálogos etéreos, decerto em alegoria à fome no mundo, à injustiça e censura às liberdades individuais. Perturbadores eram os encontros com os amigos, taciturnos cinéfilos: “E aí, gostaste?” E respondíamos reverenciais e solenes: “Jean-Luc é o máximo!”.
Koyaanisqatsi (1982)
Vivi o drama de acostumar-me a mais essa dissimulação. Só depois alguém opinou que os franceses faziam filmes baratos, chatos e difíceis de entender, ou seja, de arte. E os louvávamos: era nossa reação ao imperialismo ianque e suas guerras. Os tais realizavam fitas caras e fáceis, ao gosto do povaréu. Alienados! – gritávamos com náusea. Apreciávamos o experimental, o aleatório, a película em branco e preto com o beneplácito da Nouvelle Vague e os Cahiers du Cinéma.
Koyaanisqatsi (1982)
Ufa, por quantas noites queimei tutano esperando Godot em ciclos de conferências sobre semiótica e estruturalismo, o desconstrucionismo e maquinações tais que reduziriam a zero os enigmas do mundo! Não me recordo [esqueci-me de dizer, estou numa praia] se foi Fellini quem escarneceu assinalando que, para se obter uma cena “de arte” bastava filmar uns minutos com a câmera fora de foco. Resultariam mechas de intenções, brumas de sentidos que instauravam uma aura vanguardista a questionar o establishment, enfim, obra aberta a vagas interpretações.
A trilogia
Viste Koyaanisqatsi? Era assim, filme-cabeça duma trilogia acachapante. Invertia o papel da música no cinema. Sorvíamos os acordes minimalistas de Philip Glass. Deslumbrei-me ao descobrir que o músico era taxista de Manhattan. Em Koyaanisqatsi (Life out of Balance), a mostrar o desequilíbrio da existência, nuvens em movimento anunciavam catástrofes, flores se abriam num átimo, alheias à ordem do mundo e à multidão que ia e vinha atormentada, como formigas em fim de outono.
Koyaanisqatsi (1982)
Tudo à contramão dos conceitos retilíneos e à aritmética inteligível das frases, na cadência do tempo que me pôs vincos no rosto e esta fatiga sexagenária. No solilóquio de agora, aqui, à beira do mar, o violão, o cigarro de maço e esta lua de ilusões. Ondeado pela confissão duma gesta de inúteis façanhas, mescla de heroicidade e agonia, em tedioso contato contigo, oh leitor.
O cronista naqueles tempos,
É tudo verdade,
tudinho.
tudinho.
terça-feira, 1 de maio de 2012
FIDALGOS E NINGUÉNS
Pintura Rupestre - Cueva de Altamira (Espanha)
Macondo era entonces una aldea de veinte casas de barro y cañabrava construídas
a la orilla de un rio de águas diáfanas que se precipitaban por un lecho de piedras
pulidas, blancas y enormes como huevos prehistóricos. El mundo era tan reciente, que
muchas cosas carecían de nombre, y para mencionarlas había de señalarlas con el dedo.
García Márquez. Cien Años de Soledad
No princípio, quando o mundo então pequeno, as gentes eram em si mesmas e nos bastava tê-las nos olhos. Ao mencioná-las, pouquíssimos sons: Eva, Esaú, Abel e Lia. Porém, por atenderem ao convite das alturas e, sobretudo, por gostarem disso, os viventes foram fecundos e se multiplicaram. E, em pouco, o mundo se viu apinhado de Elias, Josés e Sofias, tantas e tantos que careciam de especificações: “Severino da Maria, do finado Zacarias, lá da Serra da Costela, limite da Paraíba”. E, pra se distinguirem dos demais, impuseram-se epítetos e qualificativos apostos: Alexandre, o Grande; Manuel, o Venturoso; Isabel, a Redentora; Collor; o Caçador de Marajás...
Collor, o Caçador de Marajás
ex-presidente do Brasil
Individuações suscitaram os apelidos de família ou sobrenomes. Assim, em louvor à terra natal, patriarcas fizeram herdeiros os de Lisboa, de Coimbra, de Assis, de Toledo, de Holanda, Romanos, de Pádua, Toscanos e Parises. Também os do Vale, do Monte, do Porto, da Costa, das Neves e Monteiros, da Rocha, Castelos e Pedrosos, do Prado, do Rego, Salinas, Barrosos e Ribeiros. Atributos dalgum progenitor prolongar-se-iam nos Calvos, Penteados, Magris, Longos, Maldonados, Fortunatos e Leais, Pagotos, Falícios, Francos, Amados e Amarais, Puritas, dos Reis, Furtados e Modestos, Verdes, Cândidos, Brancos, Morenos e Negrões, Vermelhos, Pacíficos, Valentes, Severos, Botelhos e Brandões.
Tor a Prehistoric Odyssey, de Joe Kuberty
Brotaram os Ramos, Carvalhos e Oliveiras, Pimentas, Figueiras e Pinheiros, Arrudas, Pereiras e Nogueiras, assim como os Matos, Silvas e Silveiras. E linhagens de bichos: Galos, Pintos, Aranhas e Baratas, Raposos, Carneiros, Cabreiras, Aguiares e Bezerras. Se o senhor de antanho achegava-se aos pescados, inaugurava estirpes de Peixotos, Vieiras, Sardinhas, Piranhas, Delfins e Camarões. Da lida diária nasceram os Linhares, Guerras, Pires, Botas, Motas, Machados e Espadas, Trabucos, Barbeiros, Ferros, Pratas e Ferreiras, Limas, Cunhas, Estradas, Correias e seus Juniores, Filhos e Netos.
Alley Oop (Brucutu), de V. T. Hamlin
Com a ganância como fetiche original (Caim significa possessão), inventaram de retalhar a terra e negociá-la aos metros quadrados. É que, para o usufruto de muito, uns poucos houveram por bem achacar os demais. E, vendo lucro até com o rabo dos olhos, acharam pertinente extorquir os semelhantes, confiscando-lhes té mesmo os sobrenomes. Assim nasceram os de Jesus, dos Santos e Santanas, dos Anjos, da Cruz e do Espírito Santo, além dos que, de tão bastardas descendências, vieram ao mundo por milagre do próprio Nascimento.
Captain Cavern (Capitão Caverna),
de Joe Ruby e Ken Spears
Os Retirantes (1944), de Cândido Portinari. Óleo s/ tela,
103 x 97 cm, Museu de Arte de São Paulo 'Assis Chateaubriand'
Vi cómo eran elegidos los pedestales de la patria.
A las once de la mañana llegaron del campo las carretas atiborradas de inquilinos.
Era en invierno, mojados, sucios, hambrientos, descalzos,
A las once de la mañana llegaron del campo las carretas atiborradas de inquilinos.
Era en invierno, mojados, sucios, hambrientos, descalzos,
los siervos de Chimbarongo descienden de las carretas,
torvos, tostados, harapientos, son apiñados, conducidos con una boleta en la mano...
torvos, tostados, harapientos, son apiñados, conducidos con una boleta en la mano...
Elección en Chimbarongo, de Pablo Neruda
sábado, 31 de março de 2012
MILLÔR FERNANDES
- 50% dos pacientes morrem de médico! -
Confessava com amarga sinceridade : não é que com a idade você aprenda muitas coisas ; mas você aprende a ocultar melhor o que ignora. Até 1962, assinava “Vão Gogo ”, em analogia ao grande pintor pós-impressionista. Depois assumiu “Millôr”, com “l” duplo e chapeuzinho no “ô”, aceitando as armadilha da caligrafia esgarranchada. Foi registrado como “Milton”. Na escola , o “t” virou “l”, o corte mal posicionado da letra virou circunflexo e o “n”, “r”. Deu Millôr.
Escrevia por aforismos , o mesmo artifício utilizado por Hipócrates para ensinar medicina . Expressava-se em breves , pensativas e agudas sentenças . Numa “lembrança genética ” ao curandeiro grego , proclamava com malandrice que a anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que , nas mulheres , fica muito melhor . Seu método implicava o virtuosismo da arte de escrever , proficiência para os jogos de sentidos e ruptura com o psicologicamente esperado.
Millôr mexia com o estabelecido e captava o leitor no contrapé dos conceitos. Nessa linha , observou com desconcertante lógica que de todas as taras sexuais , não existe nenhuma mais estranha que a abstinência . Irônico , recomendou: “jamais diga uma mentira que não possa provar ”. Lírico , fitava o humano com olhos fatalistas: viver é desenhar sem borracha . Perspicaz , jogava em nossa cara que não ter vaidades é a maior de todas. E exclamava pessimista : como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem !
Millôr foi recusa ao “espírito de rebanho ”, o anticlichê flagrado no pulo do gato , o xeque-mate aos padrões usuais. Era um gênio antidogmático e que se anunciava como “um escritor sem estilo ”. Sem estilo e paradoxalmente único. Não cabe nos escaninhos comuns dos grandes realizadores . Ano após ano , corporificou o maravilhoso atrevimento da criação, sensibilidade e intelecto. Antecipando-se à morte que agora se deu, assim se despediu: É meu conforto : da vida só me tiram morto .
(Millôr Fernandes, 1923-2012)
Assinar:
Postagens (Atom)