- 50% dos pacientes morrem de médico! -
Confessava com amarga sinceridade : não é que com a idade você aprenda muitas coisas ; mas você aprende a ocultar melhor o que ignora. Até 1962, assinava “Vão Gogo ”, em analogia ao grande pintor pós-impressionista. Depois assumiu “Millôr”, com “l” duplo e chapeuzinho no “ô”, aceitando as armadilha da caligrafia esgarranchada. Foi registrado como “Milton”. Na escola , o “t” virou “l”, o corte mal posicionado da letra virou circunflexo e o “n”, “r”. Deu Millôr.
Escrevia por aforismos , o mesmo artifício utilizado por Hipócrates para ensinar medicina . Expressava-se em breves , pensativas e agudas sentenças . Numa “lembrança genética ” ao curandeiro grego , proclamava com malandrice que a anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que , nas mulheres , fica muito melhor . Seu método implicava o virtuosismo da arte de escrever , proficiência para os jogos de sentidos e ruptura com o psicologicamente esperado.
Millôr mexia com o estabelecido e captava o leitor no contrapé dos conceitos. Nessa linha , observou com desconcertante lógica que de todas as taras sexuais , não existe nenhuma mais estranha que a abstinência . Irônico , recomendou: “jamais diga uma mentira que não possa provar ”. Lírico , fitava o humano com olhos fatalistas: viver é desenhar sem borracha . Perspicaz , jogava em nossa cara que não ter vaidades é a maior de todas. E exclamava pessimista : como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem !
Millôr foi recusa ao “espírito de rebanho ”, o anticlichê flagrado no pulo do gato , o xeque-mate aos padrões usuais. Era um gênio antidogmático e que se anunciava como “um escritor sem estilo ”. Sem estilo e paradoxalmente único. Não cabe nos escaninhos comuns dos grandes realizadores . Ano após ano , corporificou o maravilhoso atrevimento da criação, sensibilidade e intelecto. Antecipando-se à morte que agora se deu, assim se despediu: É meu conforto : da vida só me tiram morto .
(Millôr Fernandes, 1923-2012)