Não há bicho mais estranho neste mundo, o grilo. Sempre à espreita, mas secreto e salteante, semelha a um graveto em surto neurótico. Feito de engrenagens sumárias e onipresente no ruído incisivo, o grilo tem por ofício rasgar as cortinas da noite. Dizem que o potente aparelho sonoro localiza-se na nervura das asas anteriores, apenas dos machos. Às grilas, silenciosas e certamente desamadas (por isso nunca dão berço, carinho e tetas aos grilinhos), é dada a prerrogativa de gerar a alta densidade populacional de grilos, no moto-contínuo das estridências da vida.
Não querendo polemizar com o rigor e sacerdócio dos mais obstinados grilólogos, diria que os grilos – inseto ou na versão humana – nasceram para a função patológica da aporrinhação. Claro, sou leigo no assunto, e sobre o tema devem existir teses aprovadas com distinção e louvor, com a chancela de vetustos órgãos nacionais fomento à pesquisa. Isto, nos vários campos da ciência, da zoologia à semiótica (esta, a mais fecunda encarnação intelectual do grilo). Leigo, repito, não tive acesso às certamente perspicazes reflexões semióticas sobre o cricri, onomatopeia eloquente do personagem em questão.
Poucos nomes da fauna derivaram tantas e novas palavras. “Gatuno” é malandro que furta, em paralelismo com o gato; o que faz “cachorrada” aprontou alguma com alguém; “borboleteante” é o sujeito volúvel, que vaga como borboleta. Porém, beirariam o vale dos abusos verbos como “andorinhar”, “besourar”, “onçar” e suas flexões. O grilo, porém, nos deixou uma fortuna léxica. Diz-se que alguém “grilado” padece de desassossego; quando algo possui “grilo”, a situação está ruça; motor “grilando” precisa ir ao mecânico; adolescente “bicho-grilo” é de lascar.
A Bug's Life (Vida de Inseto).
W. Disney Pictures, 1998.
Pelo que segue, o grilo é mais danoso que seus primos, os nefastos gafanhotos. Fez-se comparsa dum dos maiores cancros do Brasil: o grileiro. Grilos, grilagens relacionam-se à apropriação de terras públicas e privadas, por meio de escrituras fraudulentas. Grileiros, inda hoje, mobilizam o Judiciário, Ministérios e CPIs, quase sempre inóquos. A injustiça agrária, a discrepância entre riqueza e miséria, as expropriações legalizadas, o genocídio aos indígenas, o coronelismo feudal e aberrações políticas são, em grande parte, herança cultural da grilagem, grileiros e (por que não dizer?), do pérfido bichinho, o grilo.
Pe. Victor Asselin. Grilagem.
Petrópolis: Vozes, 1982.
Monteiro Lobato, no livro A Onda Verde e o Presidente Negro, revela a receita: primeiro, falsificavam a escritura da terra; depois, para dar ao documento aparência antiga, colocavam-no numa caixa infestada de grilos. Semanas após, corroída e amarelada por substâncias liberadas pelos bichos, a papelada parecia envelhecida, autêntica. Eia, pois, a orquestração monótona do grilo e a alquimia esperta de seu mais próximo transgênico: o grileiro. Galopando por campos e cidades, esse empesteamento patrimonial e vergonhoso nos ata aos modos de antanho que persistem té agora. E emburrecem o país.
foto: Sebastião Salgado