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sábado, 31 de março de 2012

MILLÔR FERNANDES








   -  50% dos pacientes morrem de médico!  -   





Humildemente ouso referir-lhe, talvez pelas costas, já que se foi. A incansável e aguçada inteligência criativa superaram em muito a maioria dos literatos, jornalistas e pensadores dos últimos tempos. Liberdade Liberdade (1965, com Flávio Rangel) foi um marco do teatro engajado; suas peças originais e inúmeras traduções de clássicos e contemporâneos são incomparáveis contribuições à dramaturgia nacional; a produção gráfico-visual, prosa literária e poemas breves em livros, jornais e revistas revelam uma das mais instigantes e provocativas personalidades brasileiras do decênio de 1940 até hoje. Popular, anedótico e universal, Millôr era fora de série.

   










Confessava com amarga sinceridade: não é que com a idade você aprenda muitas coisas; mas você aprende a ocultar melhor o que ignora.  Até 1962, assinava “Vão Gogo”, em analogia ao grande pintor pós-impressionista. Depois assumiu “Millôr”, com “l” duplo e chapeuzinho no “ô”, aceitando as armadilha da caligrafia esgarranchada. Foi registrado como “Milton”.  Na escola, o “t” virou “l”, o corte mal posicionado da letra virou circunflexo e o “n”, “r”. Deu Millôr.




Morto de ciúme
Sob a luz da lua
Vagalume lume



Escrevia por aforismos, o mesmo artifício utilizado por Hipócrates para ensinar medicina. Expressava-se em breves, pensativas e agudas sentenças. Numa “lembrança genética” ao curandeiro grego, proclamava com malandrice que a anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor.  Seu método implicava o virtuosismo da arte de escrever, proficiência para os jogos de sentidos e ruptura com o psicologicamente esperado.




Pega o trem pela traseira
A tempestade
Passageira



Millôr mexia com o estabelecido e captava o leitor no contrapé dos conceitos.  Nessa linha, observou com desconcertante lógica que de todas as taras sexuais, não existe nenhuma mais estranha que a abstinência. Irônico, recomendou: “jamais diga uma mentira que não possa provar”. Lírico, fitava o humano com olhos fatalistas: viver é desenhar sem borracha.  Perspicaz, jogava em nossa cara que não ter vaidades é a maior de todas. E exclamava pessimista: como são admiráveis as pessoas que não conhecemos bem!






Outra joia de seu extraordinário engenho criador foram os haicais e parábolas rimadas.  Indagava: colcha mais dura que a lousa da sepultura? E observava tragicômico: Aniversário é uma festa pra te lembrar do que resta.






Millôr foi recusa ao “espírito de rebanho”, o anticlichê flagrado no pulo do gato, o xeque-mate aos padrões usuais. Era um gênio antidogmático e que se anunciava comoum escritor sem estilo”. Sem estilo e paradoxalmente único. Não cabe nos escaninhos comuns dos grandes realizadores. Ano após ano, corporificou o maravilhoso atrevimento da criação, sensibilidade e intelecto. Antecipando-se à morte que agora se deu, assim se despediu: É meu conforto: da vida me tiram morto.





(Millôr Fernandes, 1923-2012)





segunda-feira, 5 de março de 2012

DOM QUIXOTE E OS GOVERNANTES








Esta e demais lustrações são litogravuras
 do francês Gustave Doré (1832-83)





Dom Quixote é uma daquelas obras-primas do engenho e refinamento humano. Mas parece escrito por mãos superiores. Narra a história dum velho fidalgo que, de tanto ler romances de cavalaria, imagina-se, ele próprio, um extemporâneo cavaleiro andante. E, no frenesi dos delírios, sai na ânsia de endireitar as torpezas do mundo, em socorro dos aflitos e injustiçados. Seu escudeiro, o lavrador Sancho Pança, é seduzido pelas venturas e aventuras do herói sonhador.





 
 

Na segunda parte (1615), Quixote e Sancho são recebidos no Castelo dos Duques. Como os moradores já conheciam a fama do personagem, por o terem lido na primeira parte (1605), pregam-lhe todo tipo de troças e patifarias. No entanto, como não via nos outros nenhum tipo de maldade, imagina que as afrontas recebidas o homenageavam. Em certo momento, prometem a Sancho uma ilha para governar. Acreditando ser verdade, Dom Quixote explica ao companheiro sobre como deveria se pautar no exercício do poder (Cap. II-XLII).







 

Foram muitos os alertas a Sancho acerca dos subornam, importunam e porfiam para estarem ao lado dos governos em busca de vantagens. “Os grandes cargos – ensina – não são senão um golfo profundo de confusões”. Previne-o para afastar-se dos venais e fraudulentos, e dos que usam o patrimônio coletivo em benefício pessoal, de correligionários, bajuladores, aliciadores de votos e parentes. Se ética e moralidade são pressupostos da honradez, mais seriam a de alguém no cargo de governante.








Apresento meia dúzia de preceitos ditos por Quixote ao escudeiro, em tradução livre do original. Como adornos da alma, alertam aos que exercem funções públicas, à época em que a obra foi concebida e em todos os tempos. E nos advertem como deveríamos governar a nós mesmos ao longo da existência.






1. Nunca te guies pela lei do bel-prazer, que costuma ter cabimento entre os ignorantes e presumidos. 2. Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, porém não mais justiça que as informações do rico. 3. Procura a verdade por entre as promessas e favores dos poderosos, como por entre os soluços insistentes dos despossuídos. 4. Quando tiveres que julgar, não descarregues todo o rigor da lei sobre o delinquente, pois não é melhor a fama do juiz rigoroso que a do compassivo. 5. Se acaso fizeres concessão às leis, que não seja com o peso da dádiva, mas da misericórdia. 6. Ao que castigares com obras não o trates mal com palavras, pois basta ao infeliz a pena do suplício, sem o acréscimo das más razões.






O velho Quixote, encarnação do ser em estado sublime, confunde-se com Miguel de Cervantes. Idealismo e realidade se misturam. Um nasceu para as páginas do livro; o outro para escrevê-las. Talvez tenham sido loucos-gênios ou gênios-loucos. Não importa. Persistem visionários e comoventes, a abastecer-nos de reflexões sobre as seivas mais puras do existirmos. Para nos tornarmos sensíveis e por isso melhores, nos intrincados enredos da vida.





Primeira edição da primeira parte (1605)