Powered By Blogger

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

CAVALINHOS DAS NUVENS








Parede-meia com a infância tinha uma data sem dono, incorporada ao patrimônio do nosso time. À sombra da mangueira, um cavalo usado e absorto.   se animava ao avistar seu dono, o charreteiro a buscá-lo sempre em roupas de domingo. Vez em quando, cedíamos o campinho de bola aos circos-teatro e quermesses da paróquia. Mas, o máximo, era o Parque de Diversões. Chegava e nos esquecíamos dos duros embates desportivos, e nos tornávamos permissores e sócios remidos da maior das maravilhas.







Entre o coração partido e a indiscrição, espiávamos na barraca de lona a moça tíbia e esquiva, filha de Amós, o dono do Parque. Nunca ousei perguntar-lhe que pecado cometera e que a fazia transformar-se, às noites, numa tarântula de lástima arrodeada de tule. Ofertávamos-lhe frutas e caramelos, mas fazia que não com o dedo. Talvez não lhe fizessem bem. Foge daí! – alguém ordenava. E voltávamos ao rebuliço da peonada descendo matulas, fincando caibros e erigindo com folhas de zinco a toca triste da Mulher Aranha.




Sônia Braga e Raul Julia em
O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Héctor Babenco


Tinha carrinhos de algodão doce e rosado, o tiro-ao-alvo e pescaria, o serviço de som em que se ofertavam guarânias como prova de amizade, a roda-gigante com assentos de courvin, os jogos de argolas, jipes com luzes faiscantes e as barcas que oscilavam como pêndulos. Os namorados se divertiam cruzando sorrisos e entrelaçando forças pra varar as nuvens.


  Shirley Jones e Gordon MacRae em
Carousel (1956), de Henry King



De minha parte, amava mesmo era o carrossel de cavalinhos. Inda no chão, não passavam de rijos entalhos em madeira com crinas aventalhadas, bocas vivas e olhos tingidos em cores de instinto. Quem não os visse como eu os vira, em evoluções equestres, pensaria: jamais seriam as montarias velozes pelos confins do mundo com Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda. Tampouco Dom Quixote os teria como o intrépido alazão Rocinante. Nem campeariam em bom galope com El Cid a enfrentar os mouros ou conduziriam São Jorge a nos espiar da lua cheia. Amontoados, sequer lembravam o solitário baio da mangueira e cujo único alento era a chegada do dono.






Meu emprego temporário era empurrar cavalinhos. Sentia-me importante, pois meu esforço movia a ciranda de folguedos em infindáveis delícias. Cuidava pra manter constante o trote ligeiro e ficava feliz porque, na cavalgada solene e ondulante dos ginetes, alguns riam pra mim. Em recompensa, o ingresso grátis para os teco-tecos de brinquedo, além do meu namoro secreto com a donzela tíbia e Mulher Aranha.






Num sábado tropecei e as ferraduras do tropel me atingiram nas costas. Rolei no eito de pó. “Retira o moleque!” – gritou Amós. Daí por diante, jamais estive comigo em datas baldias. Tudo tem seu dono! – aprendi. Mas inda ouço das nuvens um cavalinho de pau inservível, cantarejando sozinho, talvez se alembrando de mim: “Cuidado, companheiro, ou virás pra onde eu vim! Se não mudas de vida, tu terás o mesmo fim: querer pegar num fogaréu um rebanho no céu. Hipiaê-hipiaaoô!” (Riders in the Sky).



(Imagem captada na Web. Agradeço ao autor)


a Arice e Paulinho Da Costa



10 comentários:

  1. QUERIDO ROMILDO SANT'ANNA...FOI MEU MESTRE E ORIENTADOR NO CURSO DE JORNALISMO DE 1996 Á 2000 NA UNIVERSIDADEDE DE MARÍLIA.FOI MEU ORIENTADOR NO TCC, NA QUAL TIREI 10 COM LOUVOR, GRAÇAS AO MEU DESEMPENHO E AS SUAS ORIENTAÇÕES.
    LHE DEVO AGRADECIMENTOS.
    ANA PAULA FURTADO ZAMARIAN

    ResponderExcluir
  2. Muito lindo Romildo! Como já lhe disse... és um maestro das letras, e faz tão bem, que a gente acaba corando de inveja. Grande beijo, meu amigo.

    Cecilia Dionizio

    ResponderExcluir
  3. Que lindo! Com a poesia voltei a viver, menina, a magia da chegada dos parques de diversão em minha cidade. E de lá espio o menino que empurra os cavalinhos, tão consciente, sério e ocupado em seu trabalho; aprendendo as lições da vida. Para depois ensinar tão bem!
    Beijo e obrigada.
    Miryan.

    ResponderExcluir
  4. MUITO LINDOOOO....SEM COMENTARIOS...AMEIIII...!!!!
    BEIJOSSSSS...

    ResponderExcluir
  5. Romildo, voltei a minha infância ao pensar neste menino...e fui às nuvens como os cavalinhos...
    Obrigada.
    Gde abraço.
    Flávia.

    ResponderExcluir
  6. Voltei aos meus bons tempos de menino sem nenhum compromisso com a vida de gente grande... Parabéns e bons momentos pra ti; sempre !!!

    ResponderExcluir
  7. Romildo, só você! Sincronicidade máxima: na terça-feira agora, comprei o DVD do Carroussel do Henry King, com direito a Liliom, do Fritz Lang, ambos adaptações do conto do Ferenc Molnár "Um conto de ninar" (conto este que, não sei se você sabe, é lido/contado em meu roteiro "A Casa Retomada"). Ter encontrado o DVD numa liquidação nas Americanas já foi uma coincidência - era a última coisa que eu esperava encontrar, e agora aparece o cartaz do filme ilustrando sua linda crônica! Rô, seu belíssimo texto é uma volta, também, à minha infância - e aos meus cavalinhos de sonho. Sim, e também tive minha Mulher Aranha, que a gente ia ver dentro de um ônibus estacionado na praça, em Mirassol. Só tinha a cabeça de gente - de mulher, linda, com adornos e maquiagem a la Cleopatra - o resto era aranha. Dizia ter sido apanhada e aprisionada num vidro ainda pequena, sabe onde? Na pirâmide de Quéops! Nada menos. Nem Quefrem nem Miquerinos, meu amigo: Quéops! E se alimentava de maçã e sabe mais do quê? Fanta! Fanta laranja, porque na época não existia a deliciosa Fanta Uva. Um dia, entramos no ônibus com arroz cozido, escondido nos bolsos, porque alguém disse que, se o arroz fosse jogado na direção da Mulher Aranha, os grãos cozidos ficariam colados no vidro e o truque do jogo de espelhos seria descoberto. Mas o juízo e o cavalheirismo - ou seria o medo de levar um safanão do guarda? - falaram mais alto e ninguém jogou arroz nenhum, de sorte que a imagem da Mulher Aranha de Mirassol permanece viva e intacta na memória de quem viveu pra contar a história. Beijão, Romildo!

    ResponderExcluir
  8. Querido amigo
    sua crônica é linda, proustiana (A la recherche du temp perdu)...Ah! meus tempos de Macaubal.
    Obrigdo
    Wilson Daher

    ResponderExcluir
  9. Feliz do homem que guarda em si, a figura inocente de menino...Romildo, voce tem a alma laureada de infância, e isso nos faz muito bem pois, em suas crônicas voce nos leva de volta àqueles cândidos momentos...Beijos...Solange

    ResponderExcluir
  10. Momento encantado. A noite ficou mais bonita depois deste conto PERFEITO. Tenho orgulho de ser sua amiga. Abraço forte.

    ResponderExcluir