Nossa mãe e suas histórias! No cuidado de manter aceso o lenho do fogão , alentava-nos dalgum mistério da vida . Assim , se seguiram diário em nossa casa contos como as de santa Maria Goretti. Órfã de pai , cuidava dos irmãos menores . Certa vez , estando em casa a costurar, se lhe acercou um desconhecido grosseiro em palavras, obsceno em desejos . Ante a recusa ao estupro, traspassa-lhe o peito com o punhal . Em sangue , balbucia o perdão ao desalmado. Encolhíamo-nos em gesto de horror.
Santa Maria Goretti (imagem em gesso)
Certodia , com a história latejante na cabeça , quis ver a santa em figura . Era pior do que nossa mãe nos narrara. Jazia sob o altar , em manta branca de cetim , num caixãozinho de vidro . Era certo que , por armadilha do desespero, fora enterrada viva . Transbordou-se naquela imagem o mais sufocante dos meus medos . E, toda vez , pedia à mãe que repetisse nossa história predileta: a graciosa Madalena.
Santa Maria Goretti (imagem em gesso)
Certo
Santa Maria Gorettti (imagem em gesso)
Sou camarada vivido , imerso num enxame de palavras. Entrevejo nossa mãe em meio à fumaça , buscando os fios que nos enredavam em histórias . Madalena, a pecadora. Perguntei de seu pecado . Desconcertada , respondeu com um enigma : luxúria . Fiz sinal de entendimento . Em casa o que nunca houvera foi luxo (que nem na casa da Goretti). E mesmo que fôramos “luxosos”, haveria sempre a provocação do Messias: atira a primeira pedra ! Essa era minha cena predileta: o desafio à tomada de consciência e a deposição de todas as armas . Amortecidas as fúrias , Madalena se alevanta alumbrada, plena , e beija um homem por primeira vez .
Ticiano. Maria Madalena (1565),
Museu Ermitage, San Petersburg (Russia).
Pecadora? Não . Imagem difusa em nosso espelho . Eia, Musa dos quatro evangelhos , dos quatro cantos do planeta, nos quatro elementos da natureza . Madalena dos quatro mares , donzela dos quatro costados, das quatro fases da lua , dos quatro pontos cardeais. Sombra do pecado em toda gente , pendurado nas quatro hastes da cruz . Certo dia , vindo a saber que Jesus visitava um fariseu , eis que adentra na sala a dama da cidade . Quebrando as normas da casa , lentamente se aproxima. Traz num frasco o mais fino dos perfumes . Em silêncio , banha os pés do convidado e, afagando-os no rosto, enxuga-os com os cabelos . Após, na surpresa em que viera, afasta-se delicadamente.
El Greco. Maria Madalena (1580-85),
Nelson-Atkins Museum, Kansas City (USA).
Pecadora? A mulher subiu em aflição a pirambeira do calvário e ajoelhou-se ante a tragédia. Eia, ali, noiva morena dos injustiçados , enfermeira dos impuros , guardadora dos sepulcros e das ressurreições. Enlutada, aportou nalgum lugar , cheia de graça , alumiada por dentro... Os feitiços da existência engendraram seus encantos de contos por contar , de um fogão em lume a aquecer os corações. Pra que houvesse a sagração duma proposta: ser um contador de histórias e partilhá-las consigo, dileto leitor.
Rubens. Cristo e Maria Madalena (1580),
Pinacoteca de Munique (Alemanha).