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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

DALVA & HERIVELTO






Dalva & Herivelto



a Arice da Costa




Começaram em dueto que é o início dos grandes amores. Ele, poeta boêmio; ela, a paixão e rainha da voz. E abusavam da vida em frenesis de cabarés.  Formaram quarteto com os filhos pequenos em festivas cenas nas ondas do rádio e no rodopio das vitrolas. Após anos de delícias sem pecado, vieram as discordâncias, cada qual segredando aos amigos por que já não se davam tão bem.  Ele compôs pra que ela cantasse, e Dalva gravou como se não fora ela a personagem: Teu mal é comentar o passado, ninguém precisa saber o que houve entre nós dois. O peixe é pro fundo das redes, segredo é pra quatro paredes! Não deixe que males pequeninos venham transformar os nossos destinos...



Rainha do Rádio



Desjuntaram-se. Ele, amargurado, fez samba-canção à interlocutora com resignada esperança: Não, eu não posso lembrar que te amei. Não, eu preciso esquecer que sofri. Faça de conta que o tempo passou, e que tudo entre nós terminou, e que a vida não continuou pra nós dois. Caminhemos, talvez nos vejamos depois.  Ela lhe devolveu o flerte mesclado de doces lembranças: Que será da minha vida sem o teu amor? Da minha boca sem os beijos teus? Da minha alma sem o teu calor? Que será, da luz difusa do abajur lilás? Se nunca mais vier iluminar, outras noites iguais?




Que será da minha vida sem o teu amor?
Da minha boca sem os beijos teus?



Seguiram-se os bilhetes musicais.  Ela, com terna melancolia: Tudo acabado entre nós, nãomais nada. Tudo acabado entre nós, hoje de madrugada. Você chorou, eu chorei, você partiu, eu fiquei. Se você volta outra vez, eu não sei. Tudo acabado, hoje, de madrugada - indagou pensativo - seria só uma rima? Com quem ela estará? Arvoraram-se as opiniões maliciosas e Herivelto suplicava em agonia: Não falem desta mulher perto de mim. Não falem pra não lembrar minha dor. fui moço, gozei a mocidade, se me lembro dela sinto saudade. Por ela vivo aos trancos e barrancos. Respeitem ao menos meus cabelos brancos.  Sem resposta, tomou-a como mulher vulgar, uma rameira: Transformava o lar na minha ausência, em qualquer coisa abaixo da decência!


Não, eu não posso lembrar que te amei,
Não, eu preciso esquecer que sofri...


Como é comum nesses casos, uns  amigos ficam do lado de um, outros, de outro. Ataulfo teatralizou a aflição feminina e ela cantou: Errei, sim, manchei o teu nome. Mas foste tu mesmo o culpado.  Deixavas-me em casa me trocando pela orgia, faltando sempre com a tua companhia. E acrescentou noutra canção: Não quero me fazer de inocente, porém não sou tãocomo disseram por . Eu quero é meu sossego tão somente, cada um sabe de si. Ante a mudez do ex-marido e imaginando que ele estivera com outra, gravou um insulto enciumado: Sei que é doloroso um palhaço se afastar do palco por alguém. Volta, que a platéia te reclama! Sei que choras, palhaço, por alguém que não te ama!



Errei, sim, manchei o teu nome,
Mas fostes tu mesmo o culpado!



Como nos sulcos dos discos, as chibatadas da vida. Embora aquietados os duetos que prenunciam os grandes amores, jamais se desuniram em lindas canções encharcadas de dor. Antes de ir-se, ela rogou: Bandeira branca, amor, não posso mais, pela saudade que me invade eu peço paz. E se emudeceram, sem holofotes, no silêncio da noite suprema.



Bandeira branca, amor, não posso mais,
Pela saudade, que me invade, eu peço paz!


Dalva de Oliveira (1917-1972)
Herivelto Martins (1912-1992)



(amor e dor)




domingo, 20 de novembro de 2011

LÁBIOS QUE BEIJEI





Alex Raymond. Girl Rose



aos escritores
Dalton Trevisan e Miguel Jorge



O mundo é cheio de realidades. Realidade é apenas uma parte da vida cruel da qual me despeço, não sem antes expor as minhas razões subjetivas.  Primeiro, depois que ela tirou o ginasial e eu olhando as crianças de noite, disse que queria trabalhar pra fora pra realização pessoal. Palavras dela; achei graça. Afirmei que esposa minha não precisava se matar na rua e era só fazer o serviço da casa que eu aguentava no batente, como bem ou mal sempre aguentei. Teimou e fui obrigado a proibir. Como não resolveu, fui dialogar com a mãe dela. A velha nem deu bola. 



Frank Miller. Sin City


Depois, num belo dia, peguei a Odete refestelada na cama com um livro dessa escritora boca suja da cidade, de nome que não vou declinar por uma questão de pudor. Sei que isso não é leitura que presta, pois até o Dr. Mário criticou lá na obra dizendo que até em palestra no Jardim da Infância ela fala nome feio, para o pasmo da diretora. Gente dessa laia é que põe tudo a perder!


Guido Crepax. Valentina


No nosso oitavo aniversário de casamento (ela nem se lembrou da data, diga-se de passagem) dei-lhe o livro Éramos Seis da Srª. Leandro Dupré, que comprei pela Internet. É, como todos sabem, cheio de mensagens da vida vivida mesmo. Ela simplesmente falou que já passou na novela e que aquilo é melodrama e eu que lesse se quisesse. Aí, sem perder a calma, expliquei que não tinha tempo, expondo que voltava cansado da hora-extra. Pois nunca deixei faltar nada em casa, como de fato nunca deixei mesmo. Ao que ela respondeu: "Nélson, mesmo não faltando nada, ainda falta." Não entendi, mas deixei pra lá, pois foi a última vez que ela me tratou pela minha graça (nas costas só me chamava de “ele”, por influência da mãe).


Frank Miller. Sin City


Mas como se fosse pouco, tacou na minha cara que eu estava sofrendo dos nervos e precisava ir no médico. Expliquei que não era nervo de doença, mas nervo de nervoso. Ela riu me dando as costas. E mais, numa bela noite, acusou que eu era tarado. Como reagi, como é comum nesses casos, ela me xingou de maldito. Maldito e tarado, mostrando as marcas roxas nos dois lados do pescoço, dizendo que fui eu que fiz, e que ela tinha vergonha de ir pra rua com blusa decotada.


Guido Crepax. Valentina


Mais pra frente, bem entendido, dias após, chegou dizendo que estava cansada do caixa e ia sair da firma pra estudar pra modelo.  E que um amigo disse que ela era linda e tinha corpo pra esse ramo de profissão. E que ele tinha uma digital bacana e queria bater umas fotos dela. Percebi na hora, perdi a cabeça e avancei nela novamente. E a deixei trancada no quarto, sendo que a grade da janela dá num muro de seis metros. Quando voltei do bar ela chorou dizendo que ia dar parte do meu nome na Delegacia da Mulher.


Guido Crepax. Valentina



Lábios que beijei, mãos que eu afaguei! Fui um coração sossegado e quando conheci a Odete tinha nas mãos só afagos. Mas tudo mudou com a força do destino ou do tipo de criação que ela teve. Hoje, vejo que a mãe nunca fez uma unha de esforço pra explicar que estava errada. Acho que até gostava de ver a minha caveira. A gota fatídica foi ela mostrando pra velha as fotos que tirou escondida. As duas riam e me olhavam disfarçando. Aproximei e me acusou de intrometido. Odete estava simplesmente toda nua, em diversas posições. Arrastei ela pra dentro dizendo pros dois anjinhos que a mamãe ficou louca e ia levar uma lição. Dei nela várias vezes com a chave de fenda, levado por uma forte tensão emocional.


John Byrne. Os Panteras


Agora ela está aí, deitada e calma, como sempre a amei. A velha lá fora, descabelada no berreiro. E eu no sétimo vidrinho de remédio de matar barata. Odete, paixão dos meus ais, mesmo acontecendo o que sucedeu, você foi o melhor dos meus sonhos, encanto da minha vida. Agora dorme com Deus, que eu também vou dormir abraçadinho com você. Para sempre seu amor, Nélson.







terça-feira, 8 de novembro de 2011

ELEANOR RIGBY








Eia, Eleanor Rigby! Mesmo não dominando o inglês, não há quem por ela não se encante. Na letra, apenas evocações: uma mulher que vive em sonhos, guarda seu rosto num jarro junto à porta (que bela metáfora!), e recolhe arroz à saída da igreja após os casamentos. No refrão, a pergunta: Ah, todas as pessoas solitárias, de onde elas vêm, de onde elas são? Naquela igreja, um velho, Padre McKenzie, escreve o sermão que ninguém ouvirá e remenda suas meias puídas. No enterro de Eleanor, só Padre McKenzie acompanha o caixão. Ah, quanta gente solitária, quem elas são?






Que lirismo pleno de melancolia! Que harmonia de vozes cadenciadas por orquestra sinfônica com destaque aos violinos! Sai agora o livro “The Beatles: a história por trás de todas as canções”, de Steve Turner (Cosacnaify, 2010). A leitura sobre essa canção confirma a distância entre o processo criativo da arte e a obra concluída. Induz-nos a compreender como a poesia se faz dum cerzimento de fatos reais, acasos e os mistérios da inspiração.






O tema e as primeiras frases sonoras surgiram quando Paul McCartney estava ao piano. A mulher se chamaria Miss Daisy Hawkins, mas o nome não se encaixava à melodia. Imaginou-a uma jovem, mas logo a refez como uma senhora, talvez solteirona, remota lembrança de alguém que conhecera na infância.  Mudou para Ola Na Tungee, nome que não lhe pareceu suficientemente real. Pensou então na atriz Eleanor Bron (a sensual vilã convertida do filme Help! - 1965). Ou seria Eleanor Bygraves? – conta o compositor Lionel Bart –, cuja inscrição figurava na lápide dum cemitério em Londres e que Paul McCartney a sentiu como adequada à personagem.






O sobrenome Rigby, que combinava com Eleanor, surgiu numa placa defronte do Theatre Royal, em Bristol: Rigby & Evens Ltd. Era o que Paul buscava sem saber que Frank Rigby, o fundador da empresa no século 19, nascera em Liverpool, sua terra natal. Empenhados em dar consistência à história, John, George, Ringo e um amigo de infância de Paul imaginaram um catador de lixo com quem Eleanor teria um secreto caso de amor. Eis, em encontro, os corações solitários! Mas a letra se complicaria. Que tal Padre McCartney, que acompanharia Eleanor ao túmulo? McCartney definitivamente não, pois poderia confundir com uma referência ao pai de Paul.






Na lista telefônica surge o Father McKenzie, que remendava as meias de noite, em solidão. O impressionante na concepção de “Eleanor Rigby” é que Paul McCartney e John Lennon se encontraram por primeira vez no cemitério St. Peter’s, em Wooldton, em 1957, durante o Festival Anual de Verão. Portanto nove anos antes da música. A um metro de onde se conheceram havia uma lápide: Eleanor Rigby. O nome jazia na mente de Paul e foi necessário caminhar muito para se atingir o que estava próximo? São mistérios que enleiam a criação, da arte e da vida, aos sortilégios imensos do destino. Vida e morte gravadas numa pedra.







sexta-feira, 4 de novembro de 2011

CAVALINHOS DAS NUVENS








Parede-meia com a infância tinha uma data sem dono, incorporada ao patrimônio do nosso time. À sombra da mangueira, um cavalo usado e absorto.   se animava ao avistar seu dono, o charreteiro a buscá-lo sempre em roupas de domingo. Vez em quando, cedíamos o campinho de bola aos circos-teatro e quermesses da paróquia. Mas, o máximo, era o Parque de Diversões. Chegava e nos esquecíamos dos duros embates desportivos, e nos tornávamos permissores e sócios remidos da maior das maravilhas.







Entre o coração partido e a indiscrição, espiávamos na barraca de lona a moça tíbia e esquiva, filha de Amós, o dono do Parque. Nunca ousei perguntar-lhe que pecado cometera e que a fazia transformar-se, às noites, numa tarântula de lástima arrodeada de tule. Ofertávamos-lhe frutas e caramelos, mas fazia que não com o dedo. Talvez não lhe fizessem bem. Foge daí! – alguém ordenava. E voltávamos ao rebuliço da peonada descendo matulas, fincando caibros e erigindo com folhas de zinco a toca triste da Mulher Aranha.




Sônia Braga e Raul Julia em
O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Héctor Babenco


Tinha carrinhos de algodão doce e rosado, o tiro-ao-alvo e pescaria, o serviço de som em que se ofertavam guarânias como prova de amizade, a roda-gigante com assentos de courvin, os jogos de argolas, jipes com luzes faiscantes e as barcas que oscilavam como pêndulos. Os namorados se divertiam cruzando sorrisos e entrelaçando forças pra varar as nuvens.


  Shirley Jones e Gordon MacRae em
Carousel (1956), de Henry King



De minha parte, amava mesmo era o carrossel de cavalinhos. Inda no chão, não passavam de rijos entalhos em madeira com crinas aventalhadas, bocas vivas e olhos tingidos em cores de instinto. Quem não os visse como eu os vira, em evoluções equestres, pensaria: jamais seriam as montarias velozes pelos confins do mundo com Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda. Tampouco Dom Quixote os teria como o intrépido alazão Rocinante. Nem campeariam em bom galope com El Cid a enfrentar os mouros ou conduziriam São Jorge a nos espiar da lua cheia. Amontoados, sequer lembravam o solitário baio da mangueira e cujo único alento era a chegada do dono.






Meu emprego temporário era empurrar cavalinhos. Sentia-me importante, pois meu esforço movia a ciranda de folguedos em infindáveis delícias. Cuidava pra manter constante o trote ligeiro e ficava feliz porque, na cavalgada solene e ondulante dos ginetes, alguns riam pra mim. Em recompensa, o ingresso grátis para os teco-tecos de brinquedo, além do meu namoro secreto com a donzela tíbia e Mulher Aranha.






Num sábado tropecei e as ferraduras do tropel me atingiram nas costas. Rolei no eito de pó. “Retira o moleque!” – gritou Amós. Daí por diante, jamais estive comigo em datas baldias. Tudo tem seu dono! – aprendi. Mas inda ouço das nuvens um cavalinho de pau inservível, cantarejando sozinho, talvez se alembrando de mim: “Cuidado, companheiro, ou virás pra onde eu vim! Se não mudas de vida, tu terás o mesmo fim: querer pegar num fogaréu um rebanho no céu. Hipiaê-hipiaaoô!” (Riders in the Sky).



(Imagem captada na Web. Agradeço ao autor)


a Arice e Paulinho Da Costa