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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

MINHA FINAL DE '70

 



No ano do tri, eu era um professor em projeto. Fazia refeições e pernoitava numa república de futuros engenheiros, em Barretos. Tudo camaradagem, não fora o Enrico, italiano mal-humorado, alto, loiro e dos cabelos militares. Era dele quase tudo, da geladeira à escorredeira de macarrão. Ai de quem assoviasse em presença ou ligasse a TV na ausência dele! Trouxera também um canário-do-reino que fazia questão de não cantar. Por tácita obrigação e permuta pelas tralhas domésticas, revezávamos no alpiste, couve, água fresca e limpeza da gaiola, levando o pássaro ao banho de sol no galho da amoreira.





No jogo final contra a azzurra, Enrico transportou a TV para o seu quarto. Iríamos assistir à partida no bar da esquina, tomando conhaque barato pra rebater o frio. E voltaríamos disfarçando a alegria e maldizendo o polenteiro fascista. Mas. Um dos colegas escalado pra limpar a gaiola, deixou o canário escapar. Pousou na cumeeira da casa vizinha. Enquanto vinha a escada, voou desnorteado para o fio de luz e sumiu. Foi o deus-nos-acuda, ai se o Enrico souber! Reapareceu no telhado, brilhando-lhe o peito amarelo. Desceu no quintal, mas se assustou com a tarrafa de lençol que lhe atiramos. Foi ao muro, mas não se deteve, assustado com gritos de gol.




A seleção canarinha vencia e nós, aflitos, perdíamos. Aninhou-se na sibipiruna da esquina, parecia divertir-se com nosso desespero. Fingíamos distraídos, distantes e nos achegávamos. Mirava insolente, ia ao muro, após à trave do varal, à pérgula de buganvília e, de novo, descansava no fio de luz. Silêncio de tragédia. Os italianos empataram, pois Enrico soltou seu urro solitário e intermitente. Temendo que saísse à porta em menosprezo aos braziliani, nos abaixamos por detrás do muro.




Novos gritos, rojões. Aproximamo-nos do bicho ofertando-lhe dádivas. Escutava hesitante aos nossos apelos de trégua. Trinamos baixinho em seresta, mas logo voltou ao galho da amoreira. Rezamos o creio-em-deus-pai, fizemos promessa a São Longuinho inda que o que se perdera estivesse bem ali à nossa frente. Dissemos-lhe palavras doces. Supliquei-lhe de joelhos, desmantelado em pedidos. Invoquei meu protetor São Judas, mostrei-lhe a contrição por todos os pecados por pensamentos, atos e palavras. Quatro a um! - um bêbado gritou.




Malquerido, o canário se rendeu a uma folha de almeirão deixada à porta escancarada da gaiola. Entrou altivo, bebeu água e cantou pela primeira vez. Aplaudimos e ele gritou mais alto, vangloriando-se do baile que nos dera, o fascistinha ordinário! Decerto se decepcionara com o inesperado indulto. No bar, torcedores roucos, amarrotados de alívio. No rebuliço, Carlos Alberto alevantou a taça e mil mãos se ergueram para tocá-la. A Copa do Mundo é nossa! De repente, a TV se apagou. Que houve? - mil corações se entreolharam. Seria o desmancha prazer, um torturador da ditadura? Não. Era a força que acabou.




fine

Um comentário:

  1. Ilustre escritor, suas crônicas nos levam a imaginar a cena , detalhe por detalhe , uma narrativa impecável ! Romildo, parabéns ! Abraços com admiração !
    Vera Mussi

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