Dinorath do Valle. Totó Piruleta e o Menino do Povo (Ilustração: Flávio Colin) Curitiba: Edições Criar, 1986. De cada porta saíram dois ou três meninos com meninas misturadas. Peguei o Totó no colo com orgulho: "E olha só o que ele sabe fazer!". Dei uma piruleta, soltei o Totó, ele deu duas bem caprichadas. "O nome dele Totó Piruleta", falei. Desse dia em diante, na lata de comida do Totó, nunca faltou resto... (p. 15) Meu filho ganhou um singelo mimo: uma poodle saltitante e ladina, a Fifi. Sem mais nem menos, tornei-me avô. E tendo a meu lado um amigo fiel, tão raro hoje em dia, corri ao Pet Shop pra saber das novidades. De cara, levei um kit para os cães modernos: cama estampada, cobertor, vasilhas, brinquedos e, após meticulosa inquirição sobre a idade, estatura e raça do bichinho, feita por entendido em veterinária, um saco de ração. Espantei-me com a rima da hora, por demais sentenciosa: cão só come ração. Pensei: deve ser horrível passar a vida ingerindo da mesma comida. A existência definitivamente perde o gosto. Relutei em colaborar para que a Fifi se alimentasse como um triste frango de granja ou boi de confinamento cujos destinos são os matadouros. Ela, um novo ente da família, por sinal o mais ingênuo e, por isso mesmo, feliz. A variedade de rações é extensa. Vêm em sacos ornados de cãezinhos sorridentes. Como nas bulas, fica-se sabendo que são ricas em cálcio, ácidos graxos para os pelos brilhantes, farelos de carnes, vitaminas e sulfatos. Repassei marcas, preços e eram salgados. Explicaram que se trata de produto plus, superpremium, ultragolden. Nos envelopes de petiscos, ossinhos coloridos como nos cartuns, jamais reconhecíveis por cachorros; persuadiriam os olhos e bolsos dos donos. Ao me ver chegar com o estranho farnel, Fifi despejou seu olhar no sumidouro das meditações. Viu-se definitivamente enquadrada; pior, nas leis perversas do mercado. Se pudesse, diria que prefere mesmo é comida de gente, na lata, como os cães à moda antiga. Indaguei-me: que raios de alimentos são esses, os quais cachorro que se preze os abomina? Rações em saco viraram um item obrigatório do cotidiano doméstico. No Pet Shop argumentaram que refrescam o hálito, evitam o tártaro e realçam a beleza, não sei se em nome dos fabricantes ou de um conselho tutelar dos cachorros hodiernos, imaginário, mas possível. Em cada canto da cidade, um Pet Shop. Há os delivery, para o banho semanal; outros atendem com hora marcada. Em todos, gôndolas com xampus, remédios, coleiras com pedrinhas faiscantes, agasalhos... Aplicam tosas, tingimentos, escovam dentes e, no arremate, prendem laços coloridos que deixam as fêmeas com as carinhas repuxadas; nos machos, ridículas gravatas. Fantasiam-nos, sem que eles percebam, como extensões infantilizantes de nós mesmos. Parece que os cães perderam a mítica função de existirem como cães. São adestrados para as necessidades fisiológicas em locais e horas certas, atendem a comandos complicados e se amoldam com psicólogos da fala mansa. Alguns são meio sonsos, estranham a rua e sentem falta do apartamento. Latem arredios e, às tardes, estourando de vontade de mijar, trotam à esquerda de seus donos como ornatos vivos da vida moderna e consumista. Ah, lá se foram os cães que esnobavam o laçador da carrocinha: o contente vira-latas. Hoje, programados como recrutas do exército, já não dão piruletas, tampouco enterram ossos e urinam de felicidade com a nossa chegada. O cão leal e de guarda, o cão já não uiva pra a lua ou desaparece com as meias e chinelos. Ressabiado de dar-lhe comida de gente, chego à casa com outro saco de ração. Desacorçoada, Fifi mira meu filho e abana-lhe o cotó. E me devolve, em desalento, um semblante de desgosto. |
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
VIDA DE CACHORRO
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MUITO LEGAL....É ISSO MESMO.....
ResponderExcluirA CADA DIA CRIAMOS CÃES MAIS TRISTES E EMPRESÁRIOS DO RAMO PET MAIS RICOS.......SE RAÇÃO FOSSE TÃO BOM...PQ AINDA COMEMOS COMIDA CASEIRA? PQ NÃO TRATAR A FOME NO MUNDO COM FARELOS E RAÇÃO PARA SER HUMANO? EU NÃO COMEREI...SÓ MORTA.
Depois você chama meu cachorro de feio, só porque ele não faz parte dessa triste realidade canina. Ele entra e sai quando quer (ele passa pela grade do portão), e todos de onde eu moro sabem que eu sou a dona do Frederico, mas ninguém sabe meu nome.
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